Cursed City, outrora conhecida por Golden Valley, é uma cidade incrustada no interior do meio-oeste americano, em meio a cânions e desertos que já viveu seus melhores dias sendo que hoje abriga somente um punhado de almas condenadas.
Tomada por forças do mal, Cursed City é um local onde até mesmo o Diabo tem medo de andar a noite e seus habitantes vivem trancados em meio ao temor e o álcool, vivendo cada segundo das longas noites como se fossem eras. Os esperançosos rezam para o sol chegue mais rápido enquanto que os desafortunados para não terem que agüentar outra lua sob aquela cidade maldita.
Certo é que quando o sol se põe somente a escuridão tem vez naquelas paragens.
Cursed City foi à primeira das antologias editadas pela Estronho Editora que tive o prazer de ler e esta me surpreendeu tanto pelo cuidado com a diagramação quanto pela qualidade dos textos. Seguindo a proposta de sua linha editorial, cujos títulos em catálogo e seus futuros lançamentos tendem a explorar vertentes poucos ortodoxas da literatura e promoverem ótimas misturas de gênero, esta antologia reuniu vinte autores para mostrarem como seria a visão de cada um sobre o velho oeste permeado por criaturas fantásticas e seres de outros mundos.
O resultado desta mistura de elementos, que pode ser chamada de Weird West ou Oeste Estranho, resultou numa das melhores, e mais coesas, coletâneas de contos que li até então. Por conta de determinados itens do regulamento da seleção, que exigiam a presença de certos elementos da cidade fictícia, cada conto, mesmo criado por autores diversos, conseguiu manter o ritmo e o clima da narrativa ao longo das duzentas e quarenta páginas de Cursed City.
Outro ponto muito importante de ser frisado é a qualidade dos contos. Em geral as pessoas tendem a preterir a leitura de antologias, mesmo as feitas por autores únicos, por conta da variação do nível dos textos apresentados. Em Cursed City esta preocupação é inexistente, uma vez que de todas as obras selecionadas tem atrativos para todo o tipo de leitor.
O único ponto negativo com relação a publicação que acho interessante de ressaltar diz respeito a margem interna do livro, que prejudica em alguns momentos a leitura por esconder o final das frases próximas a costura. Quanto a diagramação, tanto interna quanto externa, a editora merece muitos elogios, pois oferece um livro de qualidade gráfica bem superior ao que muitas das editoras.
Em “O gigante, a curandeira e a lutadora de kung-fu”, de Alfer Medeiros, o conto que inicia a antologia, temos uma improvável união de pessoas em busca de vingança. A narrativa seria algo trivial se não fosse o detalhe do alvo deles já ter passado para o outro lado. Trabalhado muito bem com a narração onisciente, o conto tem ótimos momentos de ação que são permeados por humor sarcástico que o tornam uma leitura rápida e divertida.
O conto seguinte, “Oricvolver”, de Ghad Arddhu, narrado sob a perspectiva em terceira pessoa, conseguiu de maneira primorosa unir o clima western com a clássica busca do herói de fantasia e seus sacrifícios. O ritmo da narrativa também ajuda em muito a conduzir o leitor, impulsionando-o nos momentos certos e dando pequenas pausas dramáticas para angariar a profundidade de certas ações do protagonista.
“Número 37” de Carolina Mancini infelizmente não me agradou por dois motivos: o primeiro pela quebra da narrativa feita pela autora para apresentar as personagens ao longo do desenvolvimento. O outro ponto ruim foi o uso um pouco exagerado de palavras em inglês, principalmente adjetivos. Embora um ou outro fosse interessante, outros acabam se tornando enfadonhos (e podem prejudicar a leitura de alguns leitores). Porém vale frisar que a qualidade da narrativa e o emprego dos elementos-chave do cenário foram bem-feitos tendo o desfecho do conto marcado por uma boa dose de mistério.
O conto de Cirilo S. Lemos, “Por um punhado de Almas”, foi um dos que mais me surpreendeu. Primeiramente pela maneira como a narrativa foi apresentada: fugindo da forma tradicional de desenvolvimento, o autor inicia o conto com uma cena e depois salta para um flashback que explica todo o contexto que levou o protagonista a tal situação voltando depois ao desfecho da primeira cena. O segundo ponto consiste na escolha dos elementos para compor a atmosfera do conto, que uniu tons de terror com um pouco de ficção científica.
“A balada do coyote” de André Bozzetto Jr. traz uma história que pode ser considerada como clichê – o fazendeiro que perde muito dinheiro e não quer pagar e que logo recebe a visita de seu credor com seus meios escusos para receber a dívida –, porém em Cursed City nada é o que parece ser. Partindo deste ponto o autor envolve sua narrativa na emblemática presença de um pistoleiro que não parece ser tão hábil quanto os boatos ao seu respeito. E o desfecho do conto, no mínimo inesperado e interessante, torna esse pequeno texto um dos melhores da antologia.
Os contos seguem com “Just like Jesse James” da autora Alliah e que apresenta um bêbado desafortunado e algumas de suas teorias de conspiração. Unindo boas doses de suspense, assombro e mistério bem distribuídos ao longo da narrativa, “Just like Jesse James” te conquista por conta da descrição muito bem feita pela autora e pela imprevisibilidade dos acontecimentos que convergem em seu desfecho.
“A mão esquerda da morte” de Georgette Silen aborda o lado religioso de Cursed City, contando a chegada de um novo padre ao maldito local, mas também se desenvolve em outro núcleo que torna a leitura dele ainda mais interessante. Com as duas tramas desenvolvendo-se paralelamente o leitor consegue divisar o panorama em ambas as frentes e a mistura dos elementos oferecida pela autora garantindo satisfação com relação ao rumo tomado no final da narrativa.
“Deixe-me entrar” de Verônica Freitas tem seu mérito pela união de uma trama intricada e cheia de reviravoltas com um clima de tensão e terror que se estende desde o desespero inicial da protagonista até os momentos finais em que ela consegue virar o jogo. Achei bem articulada a narração quanto ao desenvolvimento, passando de um leve drama a cenas com certa ação sem que o conto sofresse impacto no seu ritmo por conta desta mudança.
Tânia Souza, que também tem um poema na abertura da antologia, traz “Demônios da escuridão” que trabalhou muito bem a interlocução de flashbacks com o curso natural da narrativa. Utilizando o primeiro para embasar a trama e o segundo para desenvolvê-lo a autora consegue criar uma atmosfera que uni a vingança e a inocência da protagonista algo que envolve o leitor durante toda a leitura.
“Domingo, sangrento domingo” de Romeu Martins foi uma das surpresas dentre os contos que fazem parte de Cursed City. O primeiro ponto é a presença do diálogo bem coloquial entre os personagens que consegue trazer a narrativa para mais perto do leitor e em seguida o desenrolar da trama, e suas reviravoltas, que tornam o desfecho do conto bem interessante e diferente. Além do título que é muito mais profundo em sua origem do que se esperar ao deparar-se com ele.
Em “Nem sempre a fé te salvará”, M.D. Amado conseguiu criar um clima que em sua essência aborda a dualidade entre o medo e a fé nas pessoas de Cursed City. Então entre ritos indígenas, duelos entre fantasmas e traições o autor apresenta outro lado da cidade, conduzindo o leitor a uma peculiar reflexão a respeito do que realmente protege os moradores daquele pedaço de terra maldito.
“Sally” de Valentina Silva Ferreira é a princípio um dos contos menos sobrenaturais dentre os apresentados na antologia. Porém este é um detalhe que torna a evolução da narrativa algo envolvente, gerando no leitor a expectativa do momento em que este elemento será introduzido. Assim como em “Domingo, sangrento domingo” me surpreendi com o texto por conta da maneira como a autora, de maneira brilhante, conduziu a trama para um desfecho no mínimo inesperado.
“As desventuras do pequeno Roy” para mim foi um dos contos que mais se sobressaiu dentre os demais por conta do ponto de vista escolhido pelo autor para desenvolver sua narração. Adotando a inocência de um menino e seus sonhos com cowboys e apaches combatendo em meio as ruas de Cursed City, Jota Marques conseguiu criar ao mesmo tempo um ar de terror e humor que caminham mãos dadas até a conclusão.
Ana Cristina Rodrigues merece destaque por conta de seu ótimo conto “Aquele que vendia vidas”. Embora nos tenhamos outros contos elementos bem exóticos este em particular me chamou a intenção por aproveitar-se de outro elemento sobrenatural muito conhecido da cultura americana. Valendo-se disto a autora foi capaz de criar um conto dentro da temática da antologia, porém distinto dos outros em seu cerne, o que torna sua leitura ainda mais atraente.
“Duas lendas” de Chico Pascoal foi outro dos contos que não conseguiram me satisfazer por completo. Achei um pouco confusa a narrativa nos momentos finais, embora tenha gostado bem de como o autor conduziu o início e o meio do conto, apresentando uma das lendas a que o título se refere e mostrando o caminho para a criação da segunda.
“Ainda dói?” de Davi M. Gonzales é uma lembrança daquelas conversas que as pessoas costumam ter com seus barbeiros e médicos já conhecidos antes do atendimento. Esse é um fator que contribui muito para a evolução da narrativa, que é feita diretamente por um personagem a outro. Em um relato surreal temos abduções, fantasmas e dispositivos que tornam a velha broca do dentista obsoleta. Ponto positivo para o autor ao valer-se de uma dose de ficção científica no velho oeste.
“Só o dinheiro dos mortos” de Yvis Tomazini é um conto bom, porém que poderia ser ainda melhor se houvesse reduzido o número de personagens importantes para seu desenvolvimento. O enredo é interessante e envolvente, mostrando uma tentativa de golpe por parte de um advogado, mas que acaba por se perder ao colocar vários outros elementos diretamente na ação. No trecho final tive que reler a passagem para entender o que acontecia com quem tamanha fora a confusão feita com reviravoltas e traições.
Lucas Rocha em “O fantasmas de Franklin Stuart” mistura um pouco de corrupção com o desejo de um injustiçado ter seu algoz punido. Embora não seja um enredo que se destaque por engenhosidade, aos poucos você já consegue descobrir a verdade por de trás de certos fatos, é um conto bem escrito e que cumpre seu papel de guiar o leitor para uma agradável volta em Cursed City.
“Descanse em paz” de Zenon é a penúltima parte dos relatos sobre a antiga cidade de Golden Valley e é um dos que tem um desenvolvimento e desfecho mais profundo, e desesperador para o protagonista. Também é um dos com os melhores diálogos e que causou mais impacto quando terminei de lê-lo.
Encerrando a antologia, “Sombras” de Marcel Breton que é um conto escrito com a intenção de relatar alguns momentos importantes da vida do apache radicado em Cursed City, Hodoken. Sendo narrado em primeira pessoa conseguimos ter uma maior sensação do terror e da tensão experimentada pelo personagem e com isso imergimos melhor dentro da história.
Ao terminar de lê-los restaram duas coisas: a vontade de passar novamente uma noite ouvindo o uivo dos lobos enquanto as moças do saloon de Billy Monstrengo servem um pouco de bebida assim como a imagem do cenário de RPG Deadlands que lembra em muito a aura de Cursed City.
Espero que em breve a editora queira repetir essa volta ao passado e trazer novos contos destas terras amaldiçoadas. Enquanto está não vem poderemos nos contentar com uma outra antologia cujo tema é similar ao de Cursed, Sagas Vol. 2 – Oeste Estranho da Editora Argonautas.
E embora em Cursed City as almas não tenham valor, os contos que esta traz merecem em muito serem lidos e apreciados pela qualidade e prazer que a escrita destes autores podem proporcionar.
Título Nacional: Cursed City – Onde as Almas não tem valor
Autor: Vários autores
Ano de Lançamento: 2011
Número de Páginas: 240 páginas
Editora: Estronho Editora
Onde Comprar: Livraria Estronho – Livraria Cultura
Sinopse: Cursed City é uma velha cidade do oeste, que como outra qualquer, convive com os mais diversos problemas, como arruaceiros perturbando a ordem, pistoleiros cruéis, prostituição, jogatina e todo tipo de bandido em fuga para o México. Também é alvo constante de ataques por parte de uma das tribos indígenas mais perigosas de todos os EUA, os Apaches, que sob o comando do chefe Cochise, vez por outra, resolve saquear a cidade. Mas a população de Cursed City preferia conviver com tudo isso ao mesmo tempo e em todos os dias da semana, do que passar pelas provações dais quais são submetidos em certa noites, que trazem em seu manto surpresas extremamente desagradáveis. Nessas noites, até mesmo os mais valentes homens e os mais terríveis assassinos se escondem em seus buracos imundos, esperando a morte chegar. Nem mesmo o próprio diabo se permite passear sozinho por aquele pedaço de terra amaldiçoado. As mais terríveis criaturas que a noite, e o inferno podem oferecer, visitam constantemente Cursed City e fazem até os mais cruéis pistoleiros mijarem em suas calças, como criancinhas indefesas. O medo habita em cada uma das casas da cidade. Não há padre que resista e nem xerife que permaneça vivo por muito tempo. Cursed City é a sala de espera do inferno e quem entra, raramente consegue sair. Quem mora na cidade, se tentar fugir, é castigado com um destino muito pior do que a própria morte. Até mesmo os Apaches, conhecedores dos segredos espirituais não escapam da maldição que assola a região. Eventualmente, perdem alguns de seus mais bravos homens, ao retornar de Cursed City para seus lares. Vampiros, lobisomens, demônios, espectros, criaturas que talvez nunca ouvimos falar antes... ... e autores prontos para contar essas terríveis histórias sobre Cursed City e seus mistérios malditos. Com organização de M. D. Amado, O Estronho traz até você o medo empoeirado do velho oeste misturado ao sangue das crianças e mulheres, ao suor e medo dos homens mais corajosos e ao bafo podre das criaturas mais sórdidas e brutais, vindas do inferno. Mais informações em www.estronho.com.br/cursed
Avaliação: << << << << <<
Por Gutemberg Fernandes! Apaixonado por literatura fantástica, principalmente a vampírica e de Alta Fantasia! Espero que gostem das obras trazidas por mim até vocês!
8 comentários:
Guto, estou fascinada pela resenha. Parabéns, amigo!
Eu estou com Cursed na fila de desejados já faz algum tempo, e não apenas pelo tema, que achei fantástico, mas também pela diagramação. Pena que houve esse problema dos cantos de página, que você mencionou... Mas pela Degust que baixei, só dá vontade de ler tudo *.*
Vamos ver se consigo comprá-lo logo ^^
Beijos, pessoas =*
Opa, excelente resenha, acho que a mais completa que esta coletânea já recebeu! Brigadão, Gutemberg, fiz chamada para ela em meu blog http://cidadephantastica.blogspot.com/2011/10/nova-resenha-de-cursed-city.html
Oi Guto Fernandes.
Eu sou a autora do texto que você não gostou (Número 37). Mas queria agradecer os comentários e a sinceridade.
Sobre cortar a narração para a apresentação dos personagens, é um elemento de quebra realmente, que pode agradar ou não. Agora quanto às palavras em inglês, vou buscar evitá-las, é sempre bom sanar algo que gere dificuldades para com a leitura.
Obrigada também por falar dos pontos positivos.
Fico contente que tenha gostado do livro em si.
É claro que eu ficaria mais feliz se tivesse agradado, mas é bom ter leitores que sabem trazer os pontos negativos, para que possamos melhorar.
Grande abraço.
Incrível... Já sei distinguir os resenhistas. Já no início da leitura: "tem cara de ser do Guto!" Hhaushau
O subtítulo contribuiu gradativamente para o contexto sombrio. "Onde as almas não têm valor" atrai, promete mesmo sem prometer!
Achei a capa do livro muito bonita (Na verdade adorei as unhas porque adooooro unhas longas e negras), mas conto não é o meu forte. São histórias que te prendem muito rápido, mas com a mesma velocidade te soltam, já que são pequenas. =\
Mas, em todo o caso, o fato de todos estarem ocorrendo dentro de uma mesma atmosfera talvez os torne um tanto "cúmplices".
:D
Nossa, que livro interessante! Amo contos sobrenaturais, mas nunca cheguei a ler um tão bom como esse parece ser. Li um quando era mais criança, que me deu muito medo e lembro até hoje, mas tudo por conta da minha idade na época... O último que li foi Formaturas Infernais, que gostei, mas não me assustei... A cidade ficou me lembrando de True Blood, apesar de não ter vampiros, ou talvez tenha em algum. =/
Bom, pena que ultimamente não venho comprando tantos livros, muitos para ler aqui e outros chegando... mas é uma ótima sugestão de título! Muito legal você ter detalhado cada conto.
Primeira resenha sua que leio e gostei muito. Parabéns!
http://leitoracompulsiva1.blogspot.com/
Ótimo post! Parabéns! @ThiagoRapsys (participando da promoção Halloween 2011)
Oi Guto, muito obrigada por suas impressões do conto, valeu pela resenha!
Gostei muito da capa, é bem sombria.....
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